SERGIO SOUZA POR PEDRO ULSEN


Sérgio Souza – esse infinito
humano jeito de ser

Pedro Ulsen

– Você não precisa ser tão sério. Se você levar a vida com um belo sorriso no rosto, ela é mais leve, mesmo com os problemas. Enquanto todos estão aqui, eu estou olhando para lá, sem formalidade.
– E a satisfação em ser professor?
– Eu não sei tudo e gostaria de aprender mais. Minha grande satisfação é passar mais para os alunos, é receber um ex-aluno que veio escrever sobre minha vida. Uma vez um ex-aluno me disse: “Valeu tudo o que você me falou”. O que mais eu quero da minha vida!? Não quero mais nada. Eu quero ver o crescimento do aluno, quero que a criatura supere o mestre.
– A vida tem que mudar?
– A vida tem que andar, e a vida pára quando você perde as esperanças. Tá cheio de zumbis por aí, que andam e falam.

Aula

Sérgio está vestindo uma calça jeans básica, azul – sim, meio batida pelo tempo. Nos pés, um sapato de camurça muito simples. Uma camisa bege completa o visual e, por cima dela, por conta do frio, uma blusa de lã fininha, com desenhos em forma de losango – cores azul claro, bege e cinza escuro.
Com muita naturalidade pegou um punhado de giz na sala dos professores e entrou na sala de aula, onde cerca de 20 alunos o aguardavam. Muito à vontade, ele chega esbanjando sorriso, caminhando informalmente, demonstrado leveza, desprendimento, alegria.
A voz é marcante, muito expressiva – grave, sonora, preenche e contagia o ambiente, com entonações que se alternam. O tom muda constantemente. Algumas vezes uma fala mais séria, em outros momentos mais informal, irônica. Sérgio domina a língua portuguesa impecavelmente. Mais: faz uso desse domínio e da facilidade que tem em articular suas palavras.
– Muito bem senhoras, senhores, senhoritas! Tudo bem com vocês!?
O vozeirão, bem grave, chega ao ouvido de todos. A sala não responde, todos ainda se ajeitam nas carteiras. Uns conversam com os colegas ao lado, outros vão abrindo seus cadernos.
– Não está tudo bem!? Qual é o problema? Muito bem, ótimo, quem é que está falando aííí!? Claro que são as meninas!!
O tom é sarrista. Ele fala, gesticula, chama a atenção – olha cada um nos olhos. O tom de voz sempre se alternando, passa longe da fala monótona. Neste momento os alunos já estão concentrados.
– Tenho a honra de apresentar meu amigo Pedro. Ele está aqui porque resolveu fazer o meu perfil.
Todos me olham, eu me apresento, digo porquê estou lá. Os olhares me aprovam, sou bem recebido.
– Bom, na aula passada estávamos falando de... nada!? Como assim, nada!?
Percebo que ele está forçando os alunos. A memória da aula anterior, a participação deles.
– Eu vou ao ano de 1601, e daqui a 1768. Isso corresponde ao que foi chamado de Barroco.
O som do “a” é bem aberto, o som do “o” bem esticado. A frase é enfática, entonada.
– É um período em que o neoclássico estava ligado à ascensão da burguesia. Logo depois tivemos as grandes revoluções, a industrial na Inglaterra e a burguesa, na França.
A explicação segue...
A sala de aula tem um ventilador bem empoeirado pendurado na parede lateral direita, e estava desligado. O chão é antigo, quadriculado com peças pretas e brancas, de mais ou menos 20 centímetros quadrados cada. Os alunos, idade variada, estão modestamente vestidos e são de famílias de pouca renda. Todos preparam-se para as provas do vestibular da FATEC (Faculdade de Tecnologia de São Paulo). A atenção que dão à aula é impressionante. Está claro que curtem aquele momento.
– Muito bem. 1500 é o ano do achamento do Brasil. Esse é o Quinhentismo. Digo isso com muita ironia porque todo mundo já sabia que o Brasil estava aqui. E nessa época, aliás, era 22 de abril, dois meses depois do Carnaval, e o Olodum ainda estava nas ruas, na Bahia!
A sala cai na gargalhada e ele próprio ri de si mesmo.
– Ora, em 1500 – diz, virando-se para o lado, esticando a própria espinha – o que era o Brasil em 1500? Nessa época tínhamos o Padre Anchieta, que depois virou nome de estrada, e o Padre Manuel da Nóbrega, que por inveja também virou estrada depois. Eram os bondosos jesuítas. Deus está vendo – diz, ironicamente.
– Professor, e a canonização do Frei Galvão? – alguém pergunta.
– Fé é fé, não se explica. Eu não condeno nada. Mas, você também não pode ter o olho fechado. Você também tem a razão...
Alguns minutos mais e lá se vai mais uma aula sobre Quinhentismo e Barroco. A despedida é otimista.
– A esperança, a mudança do dia e da noite é o grande estalo. Se não foi hoje, vai amanhã, ouuu depois de amanhã! Um dia dá, é só insistir! Boa noite turma!!!
Ele despende-se, enquanto, generosamente, estende seus braços para a frente, para os alunos, mantendo-os abertos. Um sorriso no rosto, os olhos estão brilhando, é nítido que ele está lá porque adora o que faz. Anuncia em voz empostada, grave, a sonora frase final:
– Senhoras, senhores, prazer em revê-los! Pooonto final! Um beijo, um abraço, tchau!

Ele

Sérgio Souza é alto, magro, negro. Tem mãos grandes e pernas compridas. O rosto é fino, a boca grande com dentes fortes e bem feitos. O nariz é ligeiramente grande e empinado. As orelhas são pequenas, o cabelo é preto, curto, bem baixinho. Não há barba, nem bigode, nem óculos. Sérgio é dinâmico e ágil. Respira profundamente, enchendo e esvaziando com gosto seus pulmões. É um cara inquieto mas não ansioso, transparece saúde e firmeza.
Nota-se que é observador, inteligente e decidido. Sérgio é dono de um vozeirão poderoso, de som bem grave e muito bem empostado. É professor de literatura há quase 30 anos e adora o que faz.
Caminha bem ereto, a cabeça reta, mantém o olhar bem arguto à frente, vê com profundidade, faz bom uso da inteligência que tem – é muito rápido, perspicaz – e conjuga excelentemente bem sua capacidade racional com sua percepção emocional. Ele é fibroso, mas maleável – a fibra lhe sustenta e lhe dá flexibilidade sem que deixe de ter força.
Na sala de aula, professor que é, provoca uma verdadeira revolução na cabeça dos alunos. É educador por excelência, conduz os jovens ao raciocínio, à visão crítica, à reflexão sobre as escolhas pessoais, bem pensadas, objetivas.
Mas, poderia sê-lo, Sérgio este, Sérgio apenas?
É mais. É firme, decidido, na sua vida ninguém dá pitaco não! Mas é também um ator. Um sujeito engraçadíssimo, que faz piadas o tempo todo, ri de si mesmo e de situações cotidianas. Tem um ótimo senso de humor, esbanja alto astral, faz-se sentir querido e contamina todos ao seu redor, normalmente contando grandes histórias ou tirando sarro de situações corriqueiras. Fala diretamente a língua dos seus alunos, se coloca junto com eles.
Não que ele seja só simpático; claro, ele é – simpaticíssimo. Mas ele é natural. E generoso quando conversa com as pessoas, e nos abraços. Mas não é que é forçado – é espontâneo, até intrigante, bonito de se ver. Simples e ao mesmo tempo inexplicável: o tratamento vai de igual para igual. Não há barreiras, orgulhos, egos. Ele faz na prática, no tratamento que dá às pessoas, todos se sentirem ao mesmo tempo iguais e humanos, mas sempre absolutamente iguais.

 Reencontro

Sete anos que eu não o via. Sérgio Souza foi meu professor de Literatura, em 2000. Desde aqueles tempos, quando freqüentei um cursinho preparatório, desses para o vestibular, seu jeito me intrigava. Quem é este cara, engraçado desse jeito, inteligentíssimo, e que nos faz pensar a todo instante. E ainda dizem que ele é senegalês?
O ano correu e neste período recebi dele muito apoio e incentivo para realmente seguir carreira em jornalismo. Passou-se 2000, faculdade fiz e o contato com ele permaneceu, via troca de e-mails.
O primeiro reencontro ocorreu próximo ao Largo do Paissandu, este ano, em um domingo de aula para ele.
Na rua Capitão Salomão, 89, o cheiro era fétido, típico das regiões centrais de São Paulo. Os prédios tinham arquitetura antiga, havia: hotéis baratos, mendigos, transeuntes, jovens, casais namoradores – alguns com bebês recém-nascidos.
Reparo na antiguidade do prédio do cursinho em que ele estava, e nas suas escadas de mármore dispostas de modo retangular.
Me dirijo ao terceiro andar, a procura de um bebedouro, e ouço, do hall do segundo andar, aquele vozeirão característico. Era Sérgio, que em sala de aula dizia algo como:
– Então, você percebe...
Observo cartazes de alguns cursos oferecidos por aquela instituição: são cursos para exército, marinha e aeronáutica. Na volta do terceiro andar, passando novamente pelo segundo, ouço novamente Sérgio em aula:
– Boa semana para vocês, bom...
O sino badala, volto ao térreo. Lá fora continuo aguardando o grande professor, de tanto tempo. Na rua observo com desinteresse um Gol GTI, que nos anos 1980 era carrão de sucesso. Estava à venda, anunciado por Milton no telefone 3313-2520. Azul e prata, rebaixado, bem ao estilo moderno, arrojado.
– Pedro Ulsen!
Ouço Sérgio me chamar, puxando bem a letra “L”, entusiasmado, feliz.
O domingo ensolarado estava maravilhoso. Encontrei-o às 11 da manhã, quando ele saía de uma aula. De lá ia acompanhá-lo até Jundiaí, no interior de São Paulo. Lá ele também tem alunos.
Seguimos para Jundiaí, de carona com outro professor, amigo seu. Márcio, que leciona matemática, guiava animadamente enquanto eu explicava para Sérgio – e também a ele, interessadíssimo na nossa conversa – a proposta do meu trabalho. Pelo telefone celular Márcio já deixava tudo acertado para a cervejinha com os amigos, logo à tarde.
No carro, esticado no banco do carona, mais à vontade impossível – despojado – Sérgio falava sobre sua vida, carreira, literatura, Machado de Assis, Seminário de Jornalismo Literário também. Para ele estava tudo ótimo.
– E você está em aulas de domingo a domingo?
– De domingo a domingo.
– Não cansa?
– Olha, eu tenho a impressão que a hora que eu cansar, vou cansar de vez.
– Sérgio, me lembro que quando fui seu aluno, você dizia que o te faz a cabeça é formar gente.
– É isso mesmo. O que me faz a cabeça é formar gente. Status, carrões, não me fazem a cabeça.
– Também me lembro que você comentava muito que gosta de dar aulas pra quem gosta de aprender.
Sérgio sinaliza que sim, que não mudou de opinião.
– Lembro também que você sempre falava muito do Machado de Assis...
– Se eu sou o que sou é graças ao Machado. Ele tinha tudo para não ser nada e foi tudo. Dá um banho no Eça de Queiroz!
– Ele te influenciou?
– O Machado acabou me influenciando. Ele tem um tom psicológico, por exemplo quando fala de Brás Cubas e Bentinho. É uma maneira irônica de tratar psicologia, fala da vida pelo lado que ninguém gosta, que é o fracasso. Eu aprendi muito jogo de palavras lendo Machado, e ele também é muito irônico.
– Também me lembro que você falava muito do Guimarães Rosa.
– Ele também influenciou muito minha personalidade.
– Fico pensando na sua formação. Imagino que tenha sido muito boa, principalmente na sua casa, com seus pais.
– Minha mãe, Dona Marie dizia que a verdade é a melhor coisa que existe, mesmo que você venha a perder. E meu pai também falava que mesmo que você não ganhe a verdade é a melhor coisa.
– Pelas histórias que você conta, a gente vê que tem muita vivência.
– Meus filhos, por exemplo. Pra eles o que eu conto é história, mas pra mim é minha vida.
– Você gosta de falar?
– Seu eu gosto de falar? Eu adoooro falar!!!
Já em Jundiaí fomos deixados por Márcio aos cuidados de um amigo, que nos levou para almoçar e depois para o cursinho onde Sérgio estava sendo aguardado para sua aula. No restaurante Nova China Sérgio gastou pouco mais de R$ 5,00. Nem dez minutos depois, estávamos prontos para mais uma aula, já no colégio, às 13h em ponto, sem ansiedade.
No curso preparatório para o concurso do Banco do Brasil o ambiente é acolhedor. A sala de aula é comprida e tem um público bem simpático – jovens com sotaques de interior. Há muita vivacidade e alegria. Neste dia a aula é de interpretação e produção de textos. Alguém grita:
– Professor, que que é ´apôsto´?
– Já vou chegar aí. Mas se você está perguntando isso eu ´apósto´ que você não sabe o que é ´apôsto´! – diz Sérgio, já rindo de si mesmo. E emenda:
– Para a produção de texto a gente trabalha com o redigir, que é expressar por palavras um pensamento. E, claro, com o interpretar, que é analisar o pensamento expresso por palavras ou não.
O tom de voz se torna mais grave. Do lado de lá da janela reparo nos sons de uma grande avenida. Naquele dia, como nos outros, Sérgio vestia-se de maneira muito simples. No bolso da camisa de listras verticais de cores branca, azul e alaranjada, uma caneta bic. Uma calça jeans, sapato de camurça, relógio no pulso do braço esquerdo, uma pulseira de couro no outro.
Como de hábito, ele subiu no tablado apenas com giz e apagador em mãos. Nada mais. Neste momento fiquei lembrando do papo que tivemos sobre Machado de Assis e Guimarães Rosa. “Machado de Assis se lê nas entrelinhas”, ele costumava dizer. E a vida, também se lê nas entrelinhas?, penso.
A aula seguiu, e eu continuei pensando sobre estas coisas. “Interpretação da arte é subjetiva”, ouço ele dizer aos seus alunos. “Guimarães Rosa: o silêncio é a gente mesmo demais”, ouço agora.
– Como a gente vai achar a palavra certa?, Sérgio inquire aos alunos. Pensando! – ele próprio responde depois de algum tempo.
Os alunos prestando toda-a-atenção-do-mundo. Ele, falando pelos cotovelos, empolgado com a aula que conduzia.
– E aí você chegou ao pensar, à análise do pensar.
Sérgio senta-se para ler o texto “O que é ser cidadão?”, tema da redação do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Coloca seus óculos de leitura, fala em voz alta.
– Então nesse exato instante do texto ele [o autor do texto] faz o que?
Vejo que ele se diverte dando aulas, essa que é a verdade. E que vive do seu próprio jeito, por si mesmo. Não está nem aí com o que vão pensar dele.
Ouço ele dizer aos alunos:
– Meu cachorro chama Segurança, pode um negócio desse!?
Os alunos prestavam atenção.
– Muito bem, ótimo, legal!
Acaba a aula.
Sem carona, nos dirigimos à rodoviária e pegamos o ônibus para São Paulo.

Início

Sérgio Souza é senegalês de nascença. Talvez mais do que conhecimento, o que muito chama a atenção em seu jeito, em seus modos, em sua postura, é sua sabedoria. Que ele tem uma excelente formação, é estudioso, basta um minuto de conversa com ele que sabemos bem o que é uma aula da melhor literatura. Mas, no entanto, todavia, porém, Sérgio traz consigo algo mais marcante, mais incontestável, um traquejo, uma manha de quem conhece as curvas da vida. Imaginar que ele teve uma excelente base, uma ótima educação familiar já é algo – mas será que traz ele, senegalês que é, traz também algo que não conhecemos daquela cultura? O que será que seus pais, africanos também, trazem de um continente sobre o qual quase nada sabemos?
A mãe, Dona Marie Vignon, lhe deu muita sabedoria. Família constituída com Paulino do Espírito Santo e Souza, mudaram-se com o filho único para Paris. Lá, a mãe estudou sociologia na Sorbonne.
– Da minha mãe herdei o jeito de ver as coisas.
– Que jeito é esse?
– Um jeito suave, tranqüilo, e a certeza de que pra tudo se dá um jeito. Tudo o que ela falava estava contextualizado na vida. E assim ela me passou várias orientações. Era uma figura interessantíssima, uma pessoa muito ativa ágil, magra que nem eu.
– E o seu pai?
– Ele era mais fortinho, bonachão, ollhava a vida pela janela da vida.
– Acredita na influência deles na sua formação?
– Sim, por um lado a agilidade de pensamento da minha mãe, e por outro, o refrear de não agir por impulso do meu pai. Lembro de um episódio, quando eu tinha uns 13 anos, e morava aqui em São Paulo, perto do que é hoje a Avenida Sumaré. Estava brincando no quintal quando caí em um poço de água e afundei. Os meninos foram correndo chamar minha mãe, que já saiu com o chinelo. Meu pai também foi, me buscou com calma, e, do alto da calma dele falou pra eu ir tomar um banho quente e disse: “É natural que um moleque faça bobagens como essas”.
E continuou:
– Eu lembro disso como se fosse hoje. Porque sei que jamais vou cair em outro poço, nem nesse nem em outros. Ele foi uma mão que me tirou do poço, que me tirou do perigo.
A história desta família é, no mínimo, prodigiosa. O pai de Sérgio, nascido no Cabo Verde, fugiu da rigidez do próprio pai. Seu grande sonho era estudar fora do país, ao mesmo tempo em que tinha um fascínio pela Bahia brasileira. Assim que pôde, sozinho e sem ninguém mais, entrou em um navio que vinha para o Brasil, clandestinamente.
– Só que teve um problema: descobriram ele. Aí ele ficou trabalhando no navio e iam mandá-lo de volta pra Cabo Verde, repatriá-lo. Quando o navio chegou a Salvador, a tripulação desceu e na primeira oportunidade ele fugiu do navio e ficou sozinho em Salvador, na região do Pelourinho. Nessa época ele dormia nas praças, na areia, sem dinheiro. Foi quando descobriu que era possível ganhar dinheiro como engraxate. Assim ele foi começando. Em Cabo Verde ele já tinha estudado o básico e aqui ele recomeçou os estudos. Deixou de ser engraxate e ingressou como contíguo caixa de banco. Depois pediu ingresso na Faculdade de Engenharia de Minas da Universidade Federal da Bahia e entrou na Petrobrás quando a Petrobrás começou o trabalho de prospecção de petróleo na África. Como ele era africano, foi deslocado pela Petrobrás para Senegal. E lá ele conheceu minha mãe. Namoraram, se casaram, e eu nasci lá.
– Seu pai nunca mais voltou pra Cabo Verde?
– Nunca mais. Uma vez eu visitei o meu avô por parte de pai lá. Ele tinha uma voz muito parecida com a minha. Eu era pequeno, fui com minha mãe e fomos muito bem recebidos.
– E como foi sua infância lá, no Senegal?
– Meu avô por parte de mãe era chefe da tribo bantu, o que era considerado um cargo alto. E lá ele tinha uma atividade muito nobre: caçador de leões. O leão, quando ele é caçado, ele não é morto, ele fica na tribo e se torna um símbolo da força da tribo. Eu costumava ir junto. E eu sei que meu avô tinha a sabedoria da sabedoria, pois ele sabia exatamente o que estava fazendo. Um dia, me lembro, quando eu tinha uns cinco anos de idade, estava com ele e me distraí na savana – ele se afastou e eu não percebi. Quando dei por mim estava no meio de cinco leões! Procurei manter a calma e não entrei em pânico. Os leões estavam simplesmente parados. Olhei em volta para cada um deles e lembrei que meu avô havia dito que a fera existe, a fera ataca, desde que ferida, com fome ou ameaçada. Saí então, andando. A língua que a gente falava era a iurubara. Quando encontrei meu avô ele disse: “O perigo está em todo lugar. Tudo é perigoso e nada é perigoso. Você enfrenta o perigo na medida em que você pode enfrentar o perigo”. Isso eu acredito que seja uma visão de maturidade. E isso sempre me volta à cabeça. Se eu tenho que fazer algo eu meço o risco. Jamais esqueço o ensinamento do meu avô, ele ensinava na raça.
Quando o pequeno Sérgio tinha oito anos, a família mudou-se para Paris. Seu pai foi transferido para o escritório da Petrobrás naquela cidade. Lá viveram dois anos.
Outros dois anos depois, novamente por conta do emprego, o pai Paulino foi transferido novamente, desta vez para o Brasil. Chegaram quando Sérgio tinha 10 anos. Moraram em Salvador, no Rio de Janeiro, e chegaram a São Paulo em 1964, quando ele tinha 12 anos de idade. Foram morar na rua Cristiano Viana. Dessa época Sérgio diz lembrar dos vizinhos japoneses, das brincadeiras de criança com carrinho de rolemã e do gosto pela leitura, despertado pelo pai.
– A mão dos vizinhos japoneses chamava-se Suiako. E os meninos, Suneu e Kaoro. O sobrenome lembro bem porque era muito sonoro: Fukumaro.
– E o gosto pelas histórias?
– Meu pai sempre passava nas bancas de jornal e comprava de tudo, aí chegava em casa e falava: “Filho, comprei pra você. Vamos sentar e ler”.

Bate-papo

– Como funciona para você, esse olhar de igual para igual?
– Eu olho de igual para igual, pode ser um professor ou um mendigo. Olho as pessoas como seres humanos. O que faz diferença, um professor de Goiânia uma vez me disse, é o que uma pessoa pode proporcionar ao mundo. Eu, Sérgio, posso oferecer minha cultura, mas também estou sempre aprendendo. Aliás, você sabe, nunca digo que sou alguma coisa. Digo que estou, porque o dia em que for, não tem mais nada para fazer, já cheguei ao fim.
– Esse seu desprendimento com as coisas, e, ao mesmo tempo, este compromisso com a sua própria vida e com a dos seus alunos, não parece, aparentemente, um contra-senso?
– Bom, pode até parecer um contra-senso, mas não é. Aos poucos você galga postos, e, na verdade, tudo o que estudei foi para mim.
– E esse jeito bem resolvido?
– Isso trago isso da gênese. Minha mãe era assim, meu avô, meu pai também. Em casa somos todos comuns. Fiz para mim. O que eu puder passar vou passar, não sonego informações de jeito nenhum! Para mim, dessa vida o que a gente leva é o conhecimento. Mas esse tipo de orgulho que está por aí, é totalmente danoso.
– E rancor, raiva?
– Guardar rancor é uma coisa que eu não seguro. Posso até “deletar” uma pessoa da minha vida. Mas ficar amargando, de jeito nenhum!
– O que você acredita que traz da cultura senegalesa?
– O culto à natureza. E também acredito muito na lei do retorno, que é uma lei da natureza. Mas tem uma coisa: você tem que ser natural, você tem que fazer, ser natural. O que vale é o que tem no coração, espontaneidade não tem como programar.
– Seu jeito hilário de ser?
– Eu também tenho preocupações, também tenho mau humor. Mas a ironia é o melhor remédio para as rugas.
– Mas esse jeito não te afasta de um compromisso com a própria vida?
– Aí eu que te pergunto: a vida é séria?
– Ah, mas eu perguntei primeiro!
– Você não precisa ser tão sério. Se você levar a vida com um belo sorriso no rosto, ela é mais leve, mesmo com os problemas. Enquanto todos estão aqui, eu estou olhando para lá, sem formalidade.
– E a satisfação em ser professor?
– Eu não sei tudo e gostaria de aprender mais. Minha grande satisfação é passar mais para os alunos, é receber um ex-aluno que veio escrever sobre minha vida. Uma vez um ex-aluno me disse: “Valeu tudo o que você me falou”. O que mais eu quero da minha vida!? Não quero mais nada. Eu quero ver o crescimento do aluno, quero que a criatura supere o mestre.
– A vida tem que mudar?
– A vida tem que andar, e a vida pára quando você perde as esperanças. Tá cheio de zumbis por aí, que andam e falam.
Sérgio tem formação em Biomedicina e em Letras. Começou a dar aulas de literatura, gramática e redação aos 19 anos e hoje, quase 30 anos depois, continua na ativa. Atualmente divide seu tempo com aulas em cursinhos de São Paulo, Jundiaí e Santos. Também é docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, e na Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), em Recife.
Quando seu pai faleceu, conta, ele queria deixar cultura como herança. Disse o pai:
– Te dou cultura pra você buscar o resto. Se te der tudo, você não vai buscar mais.
– Há algum livro da sua vida? Ou algum livro...
A resposta veio como um raio:
– Memórias Póstumas de Brás Cubas!
– Porque?
– Ah, porque o Machado é minha tese, minha dissertação de mestrado e minha tese de doutorado! É minha leitura de cabeceira, Memórias Póstumas sei de cor, de trás pra frente, de frente pra trás, tudo.
– O que é interessante no livro?
– Ele narra o conceito de vida pela ótica da psicologia. No livro, aconteceu tudo, será que valeu a pena ter vivido? Essa visão machadiana, de quem nunca foi à escola – ele capta essas coisas.
– Você convive com os jovens há quase 30 anos. Isso faz bem?
– Me sinto com disposição de 38 ou até menos. A vida com essa juventude de 18, 19 anos rejuvenesce a gente. Faço parte de todo esse conjunto. E eu me obrigo a falar a linguagem deles, pra estar em sintonia. Eu uso Orkut, MSN, estou fazendo meu blog agora. Vam´bora!
– E os alunos, mudaram muito ao longo desse tempo todo?
– Mudou muito, o interesse e os objetivos. Hoje você olha para o aluno e não vê o horizonte. O cultuar, no sentido de cultura, não se vê mais. Não há mais objetividade, nem vergonha mais, não há pejo. Há muitos que vivem porque respiram. Balada, diversão, tudo isso é importante, tudo isso é válido, mas tem que haver objetividade.
– E a vida, o que é a vida pra você?
– A vida é a arte do encontro. Embora nela haja tantos desencontros. Mas isso não é meu não! É de Vinícius de Moraes!
Pausa.
Ele continua:
– Semana passada perdi um ex-aluno muito querido, um grande amigo. Faleceu de leucemia. Isso me abalou muito. Isso me fez repensar muito a vida. Quem é essa indesejada das gentes que adentra a sua casa, ceifa uma vida, e acabou? Isso é o repensar da vida, mas de quem pensou e poetizou a vida, como Manuel Bandeira, um baluarte da morte. Ele costumava dizer: “A inexeqüível vai encontrar a casa arrumada e a mesa posta”, e ele queria dizer que é como uma visita, e é uma visita que chega de sopetão. Portanto é sempre bom deixar a casa arrumada e a mesa posta.
– Hum...
– Mas é um momento que passa. Viva porque ele não volta mais. Respire com cada instante o ar que puder carregar nos pulmões. Porque ela passa. A passagem é rápida, é curta. É um sopro, uma poesia, um momento. Portanto é bom vivê-la com sorriso.
– E seu jeito bem resolvido de estar?
– Mas tenho muita coisa para buscar ainda. Meu objetivo é estar vivo amanhã. Tô vivo, e agora o que vou fazer? Não fico fazendo planos, pra não criar uma fixação nociva. Meu objetivo é além da linha do horizonte. Se eu fizer um quarto disso, tá ótimo!
– A gente percebe que você trata todos muito bem, é muito simpático, e também é nítido que você trata todos de igual pra igual, muito naturalmente. Parece que nem tem muito o que explicar.
– Todos são pessoas, acima de tudo. Não vejo cargo, vejo as pessoas. Isso é fundamental. Isso eu aprendi com meu avô. Ele me dizia: “Olha para o leão de igual para igual, no fundo do olho dele”. Então eu olho no fundo do olho do leão, do elefante, do macaco, de todo mundo, isso independe. É um olhar com respeito e de igual para igual.

Relatos

Mas o que será que pensam dele outras pessoas que o conhecem?
Carlos Hypólito tem 19 anos, vai prestar vestibular para Engenharia e teve aulas com Sérgio ano passado, no município de Cotia. Após um ano como aluno, manteve a amizade conquistada com o professor. Na prática, telefonemas, e-mails, encontros para bate-papos.
O cara é uma comédia. E o fato dele ser engraçado torna a aula dele muito boa”, declara Carlos. “Ele faz piada com tudo e com todos, e trata todo mundo bem, é humilde”, completa.
A mesma opinião tem Lázara Aparecida Vieira, recepcionista de um cursinho onde ele dá aulas, que conhece-o há oito anos. “Ele é uma pessoa fantástica. O Sérgio onde ele estiver ele cumprimenta quem for, conversa numa boa, ele tem assunto com qualquer pessoa, e conversa sobre tudo. Além de ter uma memória fantástica”.
Lázara é uma mulher bonita, vaidosa, que cuida da sua aparência. No dia em que conversamos, fazia tricô, mostrava-se calma, falando pausadamente.
– Ele também é muito extrovertido. Esse não passa mal em lugar nenhum! Em qualquer lugar ele se arruma. Ele é bem ele e pronto. E tem um vozeirão né! Parece locutor de rádio! – lembra Lázara.
– E tem alguma coisa nele que chama a atenção?, pergunto.
– Acho que a voz né, e a simplicidade dele também. Além de ser um “puta” professor, humilde como é. Os alunos que adoram as aulas dele viu!
– Hum...
– Acho que devido à criação dele. Se fosse criado em uma família razoavelmente bem de vida, talvez não seria assim. Porque ele já comentou comigo que já passou por coisas que nunca imaginava na vida. E isso faz a pessoa ser humilde. Pra ele não tem discriminação, acho que a gente tem que ser humilde mesmo.
– Ele se interessa pelos outros?
– Sim, outro dia mesmo eu tava aqui fazendo tricô e ele ficou me perguntando como se faz os pontos...
Leandro Fernandes também foi aluno de Sérgio, há três anos, em Diadema, região metropolitana de São Paulo. O ex-aluno, que atualmente estuda Educação Física na UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), lembra que, naquela época, era tímido e o professor sempre chamava todos para participar da aula. “Ele sempre me chamava, e eu prestava atenção”.
Além da participação dos alunos, Leandro lembra que não gostava muito de literatura, mas que, com o professor, acabou “pegando gosto pelas aulas”.
Sobre as tais aulas, Carlos Hypólito também acredita que eram especiais. “Pra mim ele reinventou a literatura. E ele nos conduzia ao raciocínio, não falava as coisas prontas, sempre dava a deixa pra gente pensar”, acredita.
– E você, Leandro, gostava do jeito dele?, pergunto.
– Sim. E quando ele quer ser engraçado ele é, e quando quer fazer a gente prestar atenção, ele também consegue. Na verdade ele consegue tudo. E tem a voz dele também que chama muito a atenção, parece de locutor de rádio né!?
– Tinha alguma coisa marcante nas aulas?
– Uma coisa muito marcante da aula dele é que, toda vez quando ele chegava, sempre falava um “Bom Dia” bem forte.
Neste momento Leandro tenta imitar a fala do antigo professor, entonando uma voz bem grave. E prossegue:
– E, se ninguém respondia, ele falava de novo, e puxava mais forte ainda o “Bom Dia”. E animava o pessoal.


Impressões

Eis um legítimo professor. Sempre disposto a ensinar, compartilhar, aprender coisas novas. Com ele, sim, há de se aprender como ser melhor diante de si mesmo, diante dos outros com certeza, e como ser melhor para o mundo.
Não carrega marcas. Não há porque carregá-las. “Mágoa, tudo isso é besteira”, diz ele. Simples assim?
E tem esse jeito cômico, hilário, irônico de ser.
O que mais intriga? Este Sérgio, não é ele melhor que ninguém. Simples e humilde, mas desses que não se encontra facilmente por aí. É comum por ser como nós – humano –, se colocar como nós. Mas não é comum pelo traquejo que tem com a vida e com as pessoas. Não que nada o afete, claro. “Eu também tenho mau humor e tristezas”, afirma. Mas na essência, o traquejo é fibroso, resoluto, satisfeito, claro.
Acima de ser professor, ou melhor, estar professor, Sérgio é uma pessoa, e uma pessoa comum, absolutamente igual a todos nós, embora consiga estar sempre brilhante, inovador, sábio. Isso que ele carrega, ele traz para sua vivência, seu espaço cotidiano, seja eu jeito, suas atitudes. Não se vê necessidades egoístas ou de auto-afirmação.
É um grande sujeito, humano por excelência, exímio, até exemplar, mas não tem nada de inalcançável, nada inatingível. É como uma lição que podemos tomar, de nada mais nem menos que o embate bem sucedido, valente e despreocupado frente à vida. Tudo está dentro dele, e, claro, ele faz bom uso disso. É bem humorado, bem resolvido, inteligente, autêntico, decidido, firme e constante.
Também é interessante como ele jamais de coloca acima de ninguém. Quem o vê, não enxerga nele nem uma nesga de ar de superioridade. E tendo seu ótimo humor como segredo.
Sempre que envia e-mails (e isso ocorre com bastante freqüência), Sérgio insere algumas frases abaixo das mensagens, geralmente estas que estão abaixo. Talvez dizem um pouco mais sobre ele.

"A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência" (Fernando Pessoa)

"O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (Guimarães Rosa)

"Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra" (Shakespeare)

*Aquele que caminha sozinho pode até chegar mais rápido... mas aquele que vai acompanhado com certeza chegará mais longe!*

Nas aulas, as despedidas costumam seguir o mesmo tom. São otimistas, enfáticas:
– A esperança, a mudança do dia e da noite é o grande estalo. Se não foi hoje, vai amanhã, ouuu depois de amanhã! Um dia dá, é só insistir! Boa noite turma!!!
Ele despende-se, enquanto, generosamente, estende seus braços para a frente, para os alunos, mantendo-os abertos. Um sorriso no rosto, os olhos estão brilhando, é nítido que ele está lá porque adora o que faz. Anuncia em voz empostada, grave, a sonora frase final:
– Senhoras, senhores, prazer em revê-los! Pooonto final! Um beijo, um abraço, tchau!

***

Making Of

Perfilar Sérgio Souza foi uma oportunidade de reencontrar este antigo professor, com quem tive aulas de Literatura no cursinho pré-vestibular, em 2000.
O antigo professor tornou-se amigo pessoal, e, estes meses, empolgadíssimo com a proposta do perfil que lhe fiz.
O reencontro não somente com o mestre, de conhecimento riquíssimo, mas com a pessoa Sérgio, igualmente fascinante. Em sua maneira simples, humilde e sem complicações de levar a vida, Sérgio tem, em seu jeito de ser, em seu jeito de lidar com as situações, e em suas posturas diante da vida, algo especial. Na prática cotidiana do dia-a-dia ele torna todas as pessoas iguais, eliminando todo tipo de jogo ou barreira que podem separá-las.
A idéia de perfilar Sérgio Souza não era recente – mas sim antiga. Sete anos depois de tê-lo conhecido, muita coisa ainda me intrigava em sua personalidade e em seu jeito de ser. Sérgio é um professor dos melhores naipes, que sabe aliar como ninguém o conhecimento que adquiriu com a sabedoria já que trouxe consigo. Ele conjuga dentro de si, professor que é, bem resolvido que é, muito bem, a sua autenticidade inata, seu jeito hilário de ser e sua garra em oferecer aos alunos tudo o que sabe, legitimamente.
E as aulas são momentos verdadeiramente brilhantes. Há espaço para diversão, reflexão, auto-análise, crítica. Todos são incentivados a participar, todos são importantes, todos têm opinião.
Para mim, particularmente, tive também a oportunidade de rever aquele professor que, um dia, reforçou minha decisão em seguir na área de jornalismo. Lembro que quase todas as semanas ele lia minhas redações em sala de aula, para todos ouvirem. Me elogiava em público, me desafiava a buscar mais.
Ele próprio tem uma trajetória admirável, da qual, confesso, ainda devo descobrir mais com o tempo. Parte desta história está exposta aqui, neste perfil. Outros momentos marcantes da sua vida, ainda não sei sobre eles. Sérgio é um bom contador de histórias, mas nunca se gaba de si mesmo, passa longe de ser egocêntrico, ou exibido. Muitas vezes, o que se descobre sobre ele, só perguntando mesmo.
Mas é isso. Este legítimo ser marca na vida de todos os alunos, já reparei isso, sendo humilde, autêntico, passando a todos o que sabe, sendo engraçado, autêntico, decidido, e absolutamente humano.