segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Ressaca





É sempre um lamento, um martírio, uma tormenta, um duelo de sensações. Desfazer um laço de amizade com sempre grande e lacônico tutor, que se propôs a ensinar com sabedoria intrínseca, é dor única.
De coração apertado, encurralado por afiados e temidos arames farpados, deixo-o em minha estante com tudo ao meu redor perdendo-se em infinito abismo, inclusive o chão, e minhas pernas vacilam não encontrando sustento. Chegou o apocalipse para meu mundo temporário, é o fim da história. A leitura que se seguia a todo vapor é findada e todas as raças de pensamento rumam o mesmo destino.
Outros semelhantes a ele descansam – talvez não em paz – e assistem a uma costumeira cena. Será que conseguirá encontrar apoio nesses outros semi-órfãos que um dia tiveram sua vez e arrebataram-me com habilidade invejável, erguendo-me amiúde ao ápice do sentimento?
Noto sua indiferença ao me ver partir, e sei que se apercebe da minha tristeza. De novo! Estou em pleno déjà vu? Já vivi este capítulo!
Cumpro pena, pois continuo preso ao enredo. Sabe Deus quando terei meu alvará de soltura. Já possuo antecedentes...
Suas personagens prosseguem mais vivas que o violeta dum recém-nascido arco-íris nesta confusa e atordoada mente. Conversam comigo como se vivessem (e não vivem?) e moram em meus mais obscuros e remotos terrenos internos.
A pele, quase sempre branca, favorece o negro de alinho impecável contido em seu corpo, uma arte que respeita orgulhosamente seus limites físicos, mas que sem nenhum pudor e com desmedida eloquência invade o afortunado que o contempla. E mostra como o contraste do preto da arte e do branco da pele fundidos em harmonia resulta numa estupenda epifania de conhecimento e variadas emoções. É divino a ponto de fazer escutar o mais inexorável ser de ouvidos moucos. Até Beethoven no apogeu da surdez escutaria o que suas palavras têm a dizer com nitidez desmesurada.
Tudo o que me sussurrou essa arte tatuada em seu corpo – que tanto me serviram de consolo – hoje descansam , ainda que fora de ordem, dentro daquela parcela da mente que chamamos de coração.
Uma série de lampejos laboram em meus pensamentos, incessantes, fazendo com que diversas (foto)lembranças transcorram quase à velocidade da luz, metamorfoseando-se, como a lagarta que gradativamente se faz borboleta, num acoplo de cenas, resultando, naturalmente, num filme nítido porém desordenado.
Árduo momento! Sinto saudades... Meu pensamento permanece anestesiado, meu corpo todo obedece respeitosamente àquilo que impõe a mente, desenterrando abruptos e descarados calafrios que fazem os pelos dos meus braços se colocar em posição de marcha. E, buscando um refúgio no sorriso de minha amada, olho para o céu, e ela, doce menina, que é toda ouvidos quando preciso telepaticamente desabafar, como se já esperasse, com uma piscadela de cumplicidade e um sorriso penetrante me lembra que o estado de espírito no qual despenco agora não é inédito e tampouco será o último. Não fosse seu brilho na noite escura teria eu minha (quase) habitual serenidade restabelecida?
Quedo numa emoção confusa, absorto, sem prestar muita atenção aos meus arredores. Minto, contemplo minuciosamente o alegre verde que não necessita de um milímetro de esforço para se sobressair a esta selva de pedra.
(Engraçado, tal como observo as maravilhas da natureza, elas também se empenham em testemunhar viagens as quais faço sem sair do lugar. Irônico...).
Muito me fez flutuar. Conheci lugares inexistentes. Viajei no meu interior mais profundo. Caminhei de modo que não sentia o chão abaixo dos meus pés. Senti. Descobri.
Mas agora acabou, e por ora sinto que esta ressaca é incurável. Em momentos assim, no clímax, minhas forças fracassam, e uma vez mais se apodera de mim a trágica ideia de que permanecerei neste estado até o fim dos tempos, num bifrontismo, perdido em meio a uma tênue camada entre a amarga realidade e a doce fantasia. Parece um purgatório!
Minha psique não sabe que rumo tomar.
E eu que tanto desfrutei dessa incrível aventura, dessa revolucionária filosofia, vejo-me desolado perante um dissabor o qual, acredito, só o Divino Tempo é capaz de curar.
Será que assim se sentiam os desafortunados leitores que se apiedaram e tomaram para si a causa do jovem Werther?
Procuro me resignar, foi como um flerte efêmero e intenso, demasiado intenso... E entendo que não tardará minha próxima viagem; e ao fim da leitura é certo que virá um brinde com uma pitada de acidez: a ressaca literária.
Mas devo aceitar este paradoxo. Bons leitores me entenderão. Afinal, se esta famigerada(?) força não surge quando concluída a leitura, é porque a viagem não foi das melhores.

GUI RODRIGUES

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